domingo, 29 de julho de 2012

Humanos, demasiadamente humanos

Gosto de olimpíadas. Fato um tanto inusitado, principalmente se considerarmos que sempre servi de cabide dos agasalhos nas aulas de Educação Física na escola. Na verdade, não detestava esporte tanto assim: comecei a nadar aos 11 anos e sonhava em ser atleta olímpica. Por burrice, não falei com ninguém e também, de tão perfeito, o sonho me bastava. 

Raridade!
Também tive um herói olímpico: Gustavo Borges, medalha de prata em Barcelona e prata e bronze em Atlanta. Todo ano em que ele ia competir no Baby Barioni na piscina em que eu nadava, em que aprendi a nadar, parecia show de boyband: um bando de garotas gritando, tirando foto, pegando autógrafo. Duelo Claybom de Natação transmitindo pela Rede Manchete. Melhor eu sair correndo, antes que eu seja sequestrada por um dono de antiquário.

O atleta se aposentou e surgem outros mais rápidos, mais eficientes, mais mais. A natação brasileira hoje não passa vontade. Thiago Pereira levou ontem uma prata com gostinho de ouro, deixando Michael Phelps para trás bebendo água. Só que desta vez, o herói olímpico que escolhi não está na natação. 

Ser Usain Bolt e correr 100 metros rasos em poucos segundos é impressionante, mas possível. Ser Oscar Pistorius e fazer isso sem nenhuma das pernas - tão brilhantemente a ponto de fazer parecer vantagem correr com duas lâminas de fibra de carbono no lugar - não é impossível, é do caralho! 



Claro que isso não é produto só de força de vontade, ou de treino. O Blade Runner conta com suas Cheetah Flex Foot para correr. Mesmo assim eu me espanto, não só porque detesto correr até em esteira mesmo contando com duas pernas e pés inteiros, mas porque isso me mostra o quanto somos capazes, embora quase sempre a maioria de nós vibra várias oitavas abaixo do que poderia. 


Já sabia da existência do Pistorius, mas não sabia o seu nome. Dei de procurar por isso no dia em que minha prima não escapou de uma amputação, mesmo depois de meses lutando contra um câncer no calcanhar. Queria ter uma história legal para contar para ela, já que meu ânimo não andava lá essas coisas. O que infelizmente não funcionou, porque isso foi um tapa muito grande na minha cara. Vi o quanto estava sendo bunda-mole nos últimos tempos.

Pensar no que é humano têm me intrigado bastante. Nossa condição é frágil. Fôssemos abandonados completamente nus à natureza, que chances de sobrevivência teríamos? Não temos o ouvido-radar de um morcego, nem a visão de uma águia, não corremos como um leopardo. O que temos, então?

Há quem diga que é a inteligência. Diz Rubem Alves, inspirando-se no Piaget, que ela é a concha que protege o molusco que somos. Mas a pergunta é: onde ela mora? O senso comum nos faz esquecer que ela está em todo nosso ser, pronta para ser ativada a qualquer momento. Então, a concha está espalhada no molusco, não mora só no cérebro.


Força e delicadeza
A matéria de que somos feitos é firme e flexível o suficiente para ser modelada. Por toda essa maleabilidade, esta frágil condição humana é incrível, podendo ir muito além de sobreviver a grandes golpes. 

O fato de sermos frágeis não nos impede de sermos fortes. Além de me espantar, isto me comove. Só me entristece um pouco ver que a maioria de nós morre sem ao menos experimentar desta força. E neste ponto, a Keka tem dado um baile, mostrando a mesma tenacidade com que ela tem encarado a vida já há um bom tempo.

Neste ponto, eu vejo que não tenho condições de consolar ninguém, que neste caso, nem sei se precisa ser consolada. Preciso é tomar vergonha na cara, sentar e meter a mão na boca do leão, sem fazer cara feia.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Uma história de amor a três

I'm glad to see you back. I thought you were gone forever.
(Vladimir, Waiting for Godot, Act 1, Scene 1)
I
Meu kefi estava perdido, ou eu é que havia me perdido dele. Estou começando a achar que ele gosta de brincar de esconde-esconde comigo. Adora se perder para eu ter de me achar.

Desta vez o encontrei no Rio de Janeiro, batendo um sambinha numa caixa de fósforo. Estava até mais bronzeado, o danadinho. Dei-lhe um costumeiro tapa no ombro: "Onde você esteve este tempo todo, seu safado?" "Tinha ido comprar cigarros, aí resolvi ficar aqui." E sorriu daquele jeitinho zombeteiro que lhe é peculiar.

"Hum, sei." E emendei: "Vou fingir que acredito. Poderia até ficar brava com você, mas não vou não, porque te manjo é de outros tempos, camarada." 

E saímos para brincar perto dos arcos da Lapa, em frente ao Circo Voador, debaixo de uma garoa indecisa. Daquelas que de quase-chuva foi virando Sol.

Conversamos sobre este assunto também: "Você ainda não se convenceu que é movida a bateria solar, mesmo, né? Olha só pra você. Cê tá amarela, menina! Vai tomar sol!"

"Ok, você venceu, estou aqui para isso. Até estiquei minha estadia, assim teremos mais tempo juntos." Demos as mãos e fomos ver se o Rio de Janeiro realmente continua lindo. E continua.

II
Passamos tanto tempo colocando o papo em dia que quando o Sol saiu em todo seu esplendor, no clímax do seu espetáculo, a gente tinha dormido. E acordamos feito o Vagabundo, com seus raios solares soando como uma sirene: "E este Sol na minha caaaaaaaaaaaara!"




"Este Sol indireto, assim batendo nesta janela enorme, me conforta. Necessariamente porque me faz saber que ele sempre esteve aqui, nunca me abandonou. Ao contrário de você, seu vagabundo!", disse-lhe. "Não seja injusta, você sabe porque eu sumo. Senti muito sua falta, sabia? Desta vez, fiquei sinceramente preocupado com você. Cheguei a pensar que não conseguiríamos nos reencontrar!" 

"Own... Mas que fofo é você. Você faz isso de propósito, pensa que eu não sei? 'Té parece índio!  Assim você vai acabar ganhando o Campeonato Mundial de Esconde-esconde, hein? Mas a sua sorte, baby, é que eu também estou ficando craque em te encontrar! Demora, mas eu te acho."

"Elementar, minha cara. Mas desta vez você me assustou com aquela coisa de melancolia, fome, mito de Narciso... Aliás, onde você estava com a cabeça que eu poderia estar em Toronto? Puta frio do cacete!"

"Ah, queria dar umas bandas.Você teria gostado de lá sim, tenho certeza. A gente pode voltar lá na primavera, que você acha? E por que você não poderia estar no Canadá? Parecia que o Brasil tinha se mudado para lá. Até a Luíza estava!"

"Engraçadinha... Embora seu trocadilho seja extremamente sem graça, vou te dar um desconto. Pelo menos você está de volta!"

... Depois de um tempo ouvindo jazz e comendo melancia, decidimos que era hora de ver o Drummond. E ficamos de fazer isso no dia seguinte. 

III

Vimos que o poeta bronzeado (afinal ele não sai daquele banco no calçadão de Copacabana) também é um poeta vigiado, um poeta 1984. Depois de seus óculos terem sido furtados uma par de vezes, agora uma câmera zela pelo poeta do alto de um edifício na Av. Atlântica. E como tudo é passível de se tornar piada pronta neste mundo, a sua estátua é patrocinada por uma marca de lentes. Pagaram a nova armação, colaram com superbonder e instalaram a câmera para não ter mais prejuízo. Rá! Nem a poesia está salva da lógica de mercado. 

Muita gente na fila para ter com o poeta, mas era rápido porque a maioria quer só tirar foto com ele. Quem passa sempre por lá, às vezes dá um sorrisinho e uma batidinha em sua careca, como se o cumprimentasse. E eu, louca, querendo abraçar aquela coisa metálica, dizer o quanto ele está debaixo do meu couro surrado, de quantas vezes ele falou diretamente comigo... Mas ele, sabendo muito bem que não era o poeta e sim sua representação, não se furtou de tirar troça da minha cara e me salvar de uma camisa de força: "Por que você não faz igual a todo mundo e tira uma foto? O poeta sabe da sua piração!" E assim o fiz, até me ofereci para tirar foto para alguns outros passantes. E ninguém sequer desconfiava que eu estava diante do Amor da Minha Vida. 

IV
Na última noite, eu não tinha medo de voltar: tudo estava no meu corpo. O sol nas minhas costas, o vento deslizando por cima delas, o balanço do mar que levei para cama. E o conto do Borges, transformado em canção de ninar naquela voz quente e doce, feito brigadeiro recém-saído da panela. 

Adormecer naquela composição era o gozo mais profundo que eu poderia oferecer. Ele, me vendo do teto, ria da minha boca aberta. Disse que parecia que eu tinha engolido uma estrela cadente. 

V
Na hora de rearranjar as malas e cair no mundo outra vez, por puro cacoete estudei onde levaria o meu amigo, até escutar um grito que quase me faz cair da beliche: "VOCÊ TÁ DOIDA???"

"Doida, eu??? Por quê? Cheirou, bebeu ?!" 

"Você realmente acha que eu vou me dignar a viajar junto do seu biquíni molhado e cheio de areia, para não dizer das outras coisas que você está levando aí nesta mochila? Que eu fiz pra você?"

"Tá bom, tá bom! Foi sem querer. Desculpa, tá, ô Primeira Classe! Mas você não vai voltar comigo?" Caprichei na cara de Gato de Botas.

"Claro que eu vou. Mas eu vou no chapéu da aeromoça, na ponta da asa, mas dentro da sua bolsa não!"

E assim ele fez. Quando cheguei, ele estava grudado na janela do avião. Me deu uma piscadinha e depois um tapa na bunda que me encheu de coragem para enfrentar a vida. Descendo do avião, ele me disse:

"Lembra do gravador do Lucas Silva e Silva? Quando quebrou, ele ficou desesperado, pensando em como ele faria para inventar suas histórias. Seu Orlando disse que para imaginar não era necessário o gravador. Quando ele mostra o gravador consertado, o Lucas dispensa e diz que conseguiu inventar só com a imaginação."



"Claro que eu me lembro! Lucas Silva e Silva ajudou a formar meu caráter!"

"Então, sou mais ou menos como o gravador do Lucas, gata. Agora você me tem na hora que quiser!"

Abri um sorriso enorme. Até que enfim, compreendi: meu kefi é uma entidade wi-fi! Como não pensei nisso antes?